Os intérpretes da ONU

Trinta anos depois, lembro bem da primeira vez que entrei no prédio onde trabalham os intérpretes da ONU, naquela imensa sala da Assembleia Geral. Não era ainda intérprete, mas logo reparei nas cabines lá em cima.

Onde trabalham os intérpretes da ONU– Ali ficam os intérpretes de conferência.

A ONU tem 6 línguas oficiais. E eu pensava como era possível que os intérpretes fizessem a tradução simultânea de todas essas línguas. Bilíngue desde a infância e já trilíngue em 1985, eu tentava imaginar como funcionaria o pensamento de alguém capaz de traduzir simultaneamente todas aquelas línguas, com aquela eloquência e a riqueza dos detalhes sutis que enchem a fala dos diplomatas.

Saí da visita convencida de que os intérpretes da ONU eram as pessoas mais inteligentes do mundo, donos de um cérebro diferente, capaz de pensar ideias complicadíssimas em 6 línguas diferentes, uma gente inacessível.

Mas a vizinha do meu amigo, que me hospedava em Mercer Street, era intérprete de espanhol na ONU, uma pessoa que conhecíamos, aparentemente normal, discreta, que nem de longe indicava ter aquela inteligência tão excepcional. Ao contrário, ela parecia ser só uma senhora comum, mais uma novaiorquina de meia idade. Mas meu amigo, que estudava música, logo me disse que ela não era americana e que exercia uma profissão muito especial.

Um dia, saindo do predinho para a faculdade, vi a tal senhora sentada no café, sozinha numa mesa na calçada, e não duvidei: tinha chegado a minha chance de falar com aquela intérprete da ONU.

Ela foi gentil, achei que falava inglês como nativa, mas ela me contou baixinho que era mexicana, e que trabalhava como freelancer, intérprete de espanhol nas Comissões, não na Assembleia Geral, ela fez questão de esclarecer. E depois, para a minha máxima decepção, ela explicou que suas línguas de trabalho eram somente o espanhol e o inglês.

– Mas como você faz quando um delegado fala mandarim, ou francês?

– Nós temos relay – disse ela.

E explicou que a língua comum dos intérpretes na sede da ONU era inglês, que todos falavam inglês, além da sua própria língua, para a qual interpretam. Ela disse que os intérpretes da ONU sempre trabalham para a sua língua materna. Assim, os ouvintes da interpretação sempre ouvem a fala de um intérprete nativo.

Quando um delegado fala em outra língua, árabe, por exemplo, os intérpretes de inglês traduzem do árabe para o inglês, e todos os intérpretes das outras línguas ouvem o inglês, que serve de espinha dorsal para a construção da interpretação em todas as outras línguas disponíveis nos canais de tradução. Assim, entendi que a nossa vizinha intérprete de espanhol da ONU sempre ouvia as falas em inglês, pela tradução da cabine de inglês, mesmo que os oradores falassem em russo, sueco ou japonês.

Fiquei um pouco decepcionada. A fantasia que eu tinha criado, que de havia humanos capazes de pensar, falar e entender 6 línguas no nível dos discursos diplomáticos internacionais era só uma fantasia mesmo.

Trinta anos depois, aprendi que os intérpretes são gente que estuda muito, todo dia, sobre os mais diversos assuntos e que dominam duas, três línguas, algumas raras exceções podem chegar a dominar quatro línguas, e estudam, toda hora, sempre curiosos, procurando aprender mais, de cada registro, em cada uma das suas línguas de trabalho.

Hoje, se alguém me perguntar o que há de comum entre os intérpretes, acho que é isso, não param de estudar, em nome de sua crença desmedida no diálogo, na conversa como arma invencível para o entendimento entre as pessoas.

Texto escrito por Andréa Bianchi

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